Escrevi uma música para ti. Escrevi ao fim da tarde quando escorria o resto da chuva pelos vidros da janela da sala. Estava quase sem luz na sala e o frio entrava pelo vidro da janela da varanda que está partida,. Sim, aquela que tu partiste.

Sentei-me ao piano só para não deixar os meus dedos gelarem. Sabes como isso me incomoda, como não consigo pensar com os dedos gelados e como me torno num eu muito pior. É como se eu pensasse com as mãos. Sim, tu sempre disseste que eu guardava as minhas memórias nas mãos. Tinhas razão.

Saiu-me naturalmente uma música que pensei que não conhecia, mas assim que os dedos aqueceram e consegui voltar a pensar reconheci-a. Era a tua música. Estavas lá.

Primeiro o calor, depois o toque, a respiração, o cheiro , a voz, o sabor.

Fiquei sentada no piano e toquei até sentir os dedos a queimar. Não sei durante quanto tempo.

Adormeci ali mesmo ainda com as pontas dos dedos queimadas, mas quando acordei hoje de manhã tinham voltado a gelar e não me consigo lembrar da tua música. Tenho estado aqui sentada à espera de me lembrar dela, mas não consigo.

Talvez seja porque nunca a escrevi. Talvez seja porque tenho os dedos gelados.

cara-de-sonsa listens to Craig Armstrong: Leaving Paris