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"You can use my skin to bury secrets in..."
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sexta-feira, janeiro 31, 2003

“Words endure, Flesh does not...”


Tinha uma colecção de discos de Charlie Parker, que tinha recebido como herança do avô e que guardava na despensa conjuntamente com um gira-discos que tinha achado um dia numa feira. Só os ía buscar em ocasiões especiais. O jazz é música de arrepiar a pele e voluptuosidade e ele só gostava de partilhar isso com quem era especial. Gostava de o partilhar com ela. Ela era especial.
Ela morava longe, mas escrevia-lhe sempre cartas de amor. Às vezes aparecia lá em casa e ele ía buscar os discos do “Bird” para ouvir com ela. Ficavam os dois deitados no chão a ouvir aquelas músicas alucinadas tocadas no saxofone e acabavam os dois também alucinados só com a companhia do reflexo das suas silhuetas frenéticas em simbiose nas paredes.
Depois fumavam tabaco de enrolar porque era o que ela gostava mais, deixava-lhe o sabor na ponta dos dedos. Ele punha-lhe as gotas nos olhos e ela tomava os comprimidos a horas certas. Saíam descalços para o quintal e iam passear para a relva, senti-la sob os pés porque ela faz cócegas. Acabavam quase sempre de corpos enrolados e a rebolar.
À noite subiam para o quarto e partilhavam a cama e o corpo. Beijava-a na testa e dava-lhe a mão. Depois gostava de adormecer com a cabeça na barriga dela onde podia sentir sempre a respiração constante.
Quase nunca a ouvia falar. Escassos frémitos, gemidos, palavras ditas durante o sono, murmúrios... Ela gostava de falar por escrito e dizia tudo nas cartas que lhe escrevia frequentemente. Ela sabia que eram essas mesmas palavras que ele iria guardar para sempre em si e então eram essas as mais importantes e aquelas em que pensava com cuidado. Ela era a tinta que vinha colada às cartas que escrevia para ele e que ele guardava na mesa de cabeceira. Era por ter dito tudo no papel que quando estavam juntos ela ficava calada e ouvia-o falar, só ele. Era a vez dela gozar daquilo que ele era e então ela aproveitava cada momento para não perder nada daquilo que ele era. Ela amava tudo o que fazia parte dele e então queria poder ficar com tudo o que ele lhe dava naqueles momentos. Ela queria tudo o que ele lhe dava sem ela pedir.
Quando lhe queria dizer algo escrevia-lho na pele com a ponta dos dedos ou da língua. Quando ele queria muito ouvi-la falar arranjava uma garrafa de absinto para ela poder beber e depois ouvia-a falar. Tinha uma voz quente e rouca que lhe fazia cócegas nos ouvidos e lhe arrepiava a pele. Falava baixinho e mesmo nessas alturas ele tinha de adivinhar muito do que ela dizia ou ler-lho nos lábios.
Uma semana juntos e depois ela tinha de partir. O corpo cansado assim lhe exigia. Nunca podia ficar muito tempo longe daquele edifício grande e branco, cheio de camas que só ficavam vazias quando os seus donos as abandonavam porque nunca mais iriam poder voltar. Aquele edifício a que se tinha habituado a chamar de casa. Aquele edifício que tinha a morte escondida nos cantos das paredes.
Procurava no saco de plástico algo que lhe pudesse aliviar as dores, mas sabia bem que nada daquilo que lá trazia lhe podia pôr fim às dores. Os comprimidos já não lhe podiam curar as dores. A doença vivia agora e crescia nos seus pulmões. Já tinha chegado à fase das drogas pesadas e de ter de receber tudo por via intravenosa.
Injectava ela sozinha, directamente nas veias, a morfina que a aliviava e que ela trazia sempre escondida na mala. Apertava o braço com o que encontrava mais à mão e depois batia na carne, por cima das veias. Já quase era uma profissional a acha-las. Era como qualquer outro dependente quando começa a ressacar. Fazia tudo escondida na casa-de-banho, como se estivesse a cometer um crime, um pecado. Sentia-se uma réproba.
Mas só usava a morfina quando a dor se tornava demasiado grande para ela conseguir aguentar. Só a usava quando as mãos já não paravam de tremer e sentia a carne por dentro a dilacerar. Só a usava quando já nada mais a podia salvar e então a morfina salvava-a.
Era então que ela sabia que havia chegado a sua altura de partir. O seu corpo dizia-lho e ela fazia as malas.
Partia sempre antes do sol nascer e sem lhe dizer fosse o que fosse. Cumpria sempre um mesmo ritual. Levantava cuidadosamente a cabeça dele de cima da sua barriga e deitava-a sobre a almofada. Saía até ao jardim descalça e enrolava ela mesma um cigarro que fumava lentamente. Caminhava sobre a relva e entrava então em casa para pôr ela as gotas nos olhos e tomar os comprimidos sozinha. Colocava um disco de Charlie Parker no gira-discos e depois acordava-o sussurrando baixinho ao seu ouvido. Deitava o seu corpo sobre o dele e deixavam que os corpos fizessem as despedidas. Às vezes choravam, mas nunca percebiam se era felicidade ou tristeza. Lambiam as lágrimas um do outro e depois deixavam que o suor dos seus corpos secasse. Ele fechava os olhos e fingia que adormecia. Ela beijava-o na testa e partia.
Nunca olhava para trás. Nunca disse adeus.







posted by Sofia Ctx | 12:01 da manhã

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